Hoje, no Brasil, ninguém mais duvida do poder mobilizador do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Com o ECA nasce um novo padrão de articulação social e política em favor da infância no Brasil e, como conseqüência, uma nova forma de institucionalização e gestão das políticas para a infância.
Ao tratarmos das conquistas legais do ECA, julgamos necessária uma relembrança, mesmo com poucas pinceladas sobre um caminho percorrido.
No caminho brasileiro especialmente três legislações marcam a regulamentação jurídica e o ordenamento legal de cada época de nossa história.
1.1. Código de Menores de 1927: em defesa da higiene e da ordem.
Esse Código era um conjunto de artigos que possuía dois horizontes. Num deles consolidavam-se as leis de assistência e proteção a menores focando-se nos delinqüentes e abandonados. Estes ameaçavam a ordem pública, eram perigosos. Eram responsabilizados por sua situação passando a ser objeto da ação do Estado. O juiz detinha poderes absolutos sobre a família e a criança.
No outro horizonte estava a intervenção do Estado, sobrepondo-se à autoridade das famílias, para garantir a higiene e a raça. Havia programa de controle da lactação e da alimentação, bem como vigilância sanitária e higiênica às creches.
1.2. Código de Menores de 1979: a situação irregular.
Esse Código de Menores deu continuidade à política de destaque para o abandonado e o delinqüente, inovando quando adotava uma visão mais terapêutica e de tratamento quanto ao referir-se ao infrator. O termo chave para compreensão desta lei é: a doutrina da situação irregular. Seguia uma linha de controle social dos efeitos da pobreza e da marginalidade atribuindo poderes absolutos ao Juiz e ao Executivo. Os que por algum motivo estavam sob a proteção do Estado não eram sujeitos de direitos. Nesta linha, a todos os que estavam sob a guarda do sistema Fundação Nacional do Bem Estar do Menor-FUNABEM privilegiava-se o caráter punitivo em detrimento do educativo. Esse sistema era o programa oficial do governo no campo social de “promoção” da infância e adolescência. Ou seja, a lei era para o “menor” que significava de fato o grupo dos meninos e meninas pobres, em sua maioria de cor negra, julgados perigosos. A crise econômica e o desemprego ajudavam a aumentar a exclusão social e econômica dos mais carentes a quem se negavam os direitos básicos e fazia surgir o fenômeno “Meninos de Rua”. Focando sua política na ausência de direitos do menor ou de sua defesa, a lei servia para garantir o bem estar dos que “já estavam bem”. O sistema oficial de atendimento decretava assim sua falência uma vez que atuava de forma policialesca nos efeitos perversos de um sistema sócio-político e econômico que era injusto.
1.3. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina da proteção integral.
Antes mesmo da aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança pelas Nações Unidas, a Constituição Brasileira já havia incorporado os princípios básicos da doutrina da proteção integral à criança, integrando os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais por meio da articulação de setores da da sociedade civil, leigos, religiosos e o próprio Estado.
No Brasil, a década de 80 foi profundamente marcada pelas intensas mobilizações populares quando era denunciada a existência de milhões de crianças carentes, desassistidas ou abandonadas. Esse movimento passou a integrar a agenda de dos diversos movimentos sociais da época. Reconhecia-se a inadequação da Política Nacional do Bem Estar do Menor – PNBEM implementada pela FUNABEM. Apontava-se o Código de Menores e a PNBEM como responsáveis pelo abandono e violência com que os pequenos eram tratados no Brasil. Essa política era vista como parte integrante do sistema autoritário brasileiro. Foi essa consciência e essa luta travada pelos representantes da sociedade civil que reunia educadores, voluntários, comunidades, escolas, universidades, empresas, igrejas e sindicatos que veio preparando o terreno para as mudanças ousadas na legislação de então, o Código de Menores.
A Pastoral do Menor surgida no final da década de 70 e o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, surgido na década de 80, são exemplos de organizações a exigir um novo paradigma legal. Foi particularmente na Pastoral do Menor que os Josefinos de Murialdo se engajaram nessa luta. A década de 80 deu origem às realizações dos Seminários Nacionais da Criança e do Adolescente. Como iniciativa da Província Brasileira, tinham como objetivo refletir e apontar saídas para o grande problema que vivia a sociedade brasileira. Partia-se do princípio da frase inspiradora de D. Luciano Mendes de Almeida, então arcebispo de São Paulo, de que o “o menor não é problema, mas solução”. E em 1986, a convocação da Assembléia Nacional Constituinte para a elaboração de uma nova Carta Constitucional mobiliza o país para a incorporação de questões mundialmente debatidas na área de direitos humanos. E a articulação política da sociedade civil faz nascer o movimento “A Criança e a Constituinte”. E, em particular, os Estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Minas Gerais estão a frente dessa mobilização da sociedade civil. A Assembléia Nacional Constituinte passaria então a receber as emendas que contemplavam os direitos das crianças e adolescentes. E foi essa grande mobilização que fez com que os textos das emendas “Criança e Adolescente” e “Criança Prioridade Nacional” resultassem nos artigos 204 e 227 da Constituição Brasileira.
Este é um outro momento que marca importante participação de diversos religiosos josefinos e suas diversas obras na mobilização nacional. Foram encontros, seminários, grupos de estudo e manifestações públicas que quase sempre resultaram em estratégias de articulação para pressionar as autoridades em favor de avanços na nova legislação.
Em março de 1988 as entidades não-governamentais conseguem criar a Campanha “Criança Prioridade Nacional”. Baseando-se na nova idéia mobilizadora “criança prioridade absoluta” esse movimento, somando forças com a “Frente Parlamentar pelos Direitos da Criança, aumenta seu poder de pressão sobre o Congresso Nacional fazendo com que as duas casas, Câmara dos Deputados e Senado Federal, aprovassem por unanimidade o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA – Lei 8.069, sancionada em 16 de julho de 1990 pelo Presidente da República.
O ECA também anda em paralelo com a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – ONU, 20 de novembro de 1989. Com base na Legislação Internacional e na Constituição, passa-se a considerar uma nova base doutrinária para a garantida dos direitos fundamentais dos pequenos: a doutrina da proteção integral. Criança não é mais o menor ou incapaz, é pessoa em condição peculiar de desenvolvimento.
A forte mobilização popular rompeu com o projeto do Código anterior e a realidade sai do estigma da repressão para a postura da instituição democrática, participativa e descentralizada. Abrindo para um processo de participação da sociedade na gestão do público, como o caso dos Conselhos, o ECA é um projeto de sociedade brasileira que se constrói sobre a prerrogativa constitucional da criança como prioridade absoluta. E nesta mesma prerrogativa consegue vislumbrar o universo dos responsáveis pela garantia da doutrina da proteção integral. Para tanto, basta olhar o que se contempla no artigo considerado o coração da nova legislação:
“É dever
da família, da comunidade, da sociedades em geral e do poder público
assegurar,
com absoluta prioridade,
a efetivação dos direitos referentes
àvida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao esporte, ao lazer,
à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e
à convivência familiar e comunitária.” (Art. 4º do ECA)
No espírito da lei aparecem quatro pontos fundamentais, ou sejam:
a) Vivemos num país marcadamente excludente. Essa realidade muda a partir da mudança na gestão da infância. O ECA é um projeto de país.
b) Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e vivem numa “condição peculiar de pessoas em desenvolvimento”.
c) “Crianças e adolescentes não são questão de polícia, mas de política.”
d) Torna lei o que era um desejo de posturas que já está presente na sociedade.
Agora, o novo modelo de atendimento público aos direitos da infância e da adolescência,baseado em ações intersetoriais, se orienta a partir de alguns princípios fundamentais, como:
· Descentralização político-administrativa envolvendo as 3 esferas de governo (federal, estadual e municipal), dando preferência localizada para a municipalização;
· Participação popular através de suas organizações representativas para a formulação e controle das políticas;
· Articulação política conjunta das ações governamentais e não-governamentais;
· Priorização absoluta do atendimento às crianças, adolescentes e suas famílias.